“Ditadura assassinou meu irmão e destruiu o corpo para esconder o crime" “Ditadura assassinou meu irmão e destruiu o corpo para esconder o crime"

“Ditadura assassinou meu irmão e destruiu o corpo para esconder o crime”

  • por | publicado: 31/10/2023 - 06:02 | atualizado: 30/10/2023 - 23:36

Ao lado de amigos e deputados, Bernardo Mata Machado exibe a homenagem em memória do irmão, foto Elisabete Guimarães/ALMG

O plenário da Assembleia Legislativa, em sessão especial, homenageou (dia 26/10), o estudante José Carlos da Mata Machado, assassinado há 50 anos pela ditadura militar. Parte da programação da ‘Semana Zé’, a reunião foi marcada pelo discurso (leia abaixo) do irmão, Bernardo da Mata Machado. Jovem estudante de Direito da UFMG, Zé lutava contra o regime militar. Foi torturado e assassinado em Recife; seu corpo foi enviado à família, em Minas Gerais, após denúncias e repercussão do caso. Ele foi uma das poucas vítimas da ditadura que pode ser enterrada por familiares.

Bernardo contou que o corpo dele veio de Recife de avião, com autorização das Forças Armadas, em caixão lacrado, com proibição de abrir. Após ter contato com os relatos da advogada Mércia Albuquerque Ferreira, que traziam informações sobre a exumação do corpo de Zé Carlos, o irmão compreendeu a determinação dos militares.

“Depois dessa luta para conseguir, exumou o corpo, e a descrição que ela faz do corpo eu não vou ler para você porque é insuportável de ouvir, mas ela usou um termo que já basta: o corpo era um verdadeiro patê, estava escalpelado. Ou seja, eles tentaram esconder a identidade dele, além de torturado, arrebentaram com o corpo dele, com todos os dentes. Em suma, não é à toa que eles proibiram que a gente abrisse o caixão”, relatou, afirmando que o período da morte dele foi o mais terrível da ditadura no governo Garrastazu Médici.

Liberdade e igualdade

Bernardo refere-se ao irmão como “um homem com muita coragem e que tinha dois princípios básicos na vida, liberdade e igualdade”. “É doloroso até hoje, mas, ao mesmo tempo, a gente tem uma admiração muito grande por ele. Então, tem um aspecto que é doloroso, mas tem outro aspecto que é glorioso”, disse.

Segundo Bernardo, o princípio liberdade se referia à luta contra uma ditadura militar e a igualdade sobre a esperança de construção de uma nova sociedade onde houvesse menos exploração.

Prisão e morte

Militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), Zé Carlos já havia sido preso durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em 1968. Passou 8 meses nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), de Belo Horizonte. O jovem chegou a ocupar a vice-presidência da UNE, após ser presidente do Centro Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que ingressou em 1964 como primeiro colocado no vestibular.

O corpo chegou a ser enterrado em Recife, onde ele foi torturado e morto em 28 de outubro de 1973, no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi). Depois, foi exumado e levado a Belo Horizonte, devido ao esforço da família e da advogada Mércia Albuquerque Ferreira, que registrou, em diário, detalhes da exumação que acompanhou na época.

“Meu pai foi jornalista na juventude, professor de Direito; meu pai pegou o telefone e denunciou internacionalmente a morte dele aos jornais Washington Post, New York Times, e o senador Edward Kennedy denunciou na tribuna do Senado dos Estados Unidos as torturas no Brasil, e aí os militares não tiveram como não nos entregar o corpo dele”, relatou. O pai de Zé Carlos era Edgar Godoy da Mata Machado, deputado federal cassado na ditadura e senador na década de 1990.

Discurso: Sonhos de Bernardo

“Nos últimos anos eu tenho, reiteradamente, ouvido a palavra SONHO, assim, no singular, mas também no plural: SONHOS. Ao escutá-las, sempre reagi com ironia e às vezes com sarcasmo: “Sonhos, eu os tenho dormindo. Desperto, o que tenho são OBJETIVOS”.

No entanto, ao refletir sobre o que falaria nesta noite, conclui que a palavra sonho é cabível para se referir àqueles objetivos que são muito difíceis de alcançar. Assim, hoje, quero expressar alguns desses sonhos:

SONHO com a abertura de todos os arquivos, ainda secretos, sobre a repressão aos homens e mulheres que militaram no combate à ditadura militar, a fim de dar às famílias, e ao público em geral, o conhecimento das circunstâncias da prisão, morte e destino dos corpos de muitos deles (e delas), até hoje tidos como desaparecidos. Sonho que, ciosos servidores públicos, os guardiães desses arquivos não se furtarão às suas obrigações para com a memória e a história do Brasil.

SONHO, que, inspirado nos Tratados, Pactos, Declarações, Convenções e Recomendações internacionais sobre Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal reveja sua decisão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia e abra caminho para o julgamento e a punição daqueles que perpetraram crimes contra a humanidade, particularmente a TORTURA e o HOMICÍDIO.

SONHO que as Forças Armadas do Brasil, inspiradas numa antiga tradição, que entende serem os Exércitos a expressão do POVO EM ARMAS, abandonem a famigerada tese do INIMIGO INTERNO, e nunca mais voltem suas armas para massacrar gente do seu próprio povo.

SONHO que as mesmas Forças Armadas, imbuídas de respeito ao povo brasileiro, peçam desculpas a todo o país e, em particular às famílias das vítimas, pelos crimes que cometeram durante a chamada Guerra Suja.

SONHO, por fim, que aqueles que lutaram e morreram em razão desses crimes, sejam reconhecidos pelo Congresso Nacional como HERÓIS do povo brasileiro, e que, em consequência, seus nomes sejam inscritos no Panteão da Pátria Tancredo Neves, ao lado, entre outros, de nomes como os de Anita Garibaldi, Chico Mendes, Clara Filipa Camarão, Frei Caneca, João Pedro Teixeira, Luiz Gama, Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Zuzu Angel.

Encerro agora esse pronunciamento, fazendo, de minha própria parte, outra homenagem: refiro-me à Dra. Mércia Albuquerque Ferreira, advogada que no Recife lutou bravamente até conseguir a exumação do corpo do Zé Carlos, para que fosse trazido para ser enterrado pela família, em Belo Horizonte, mesmo com a proibição de abrirmos o caixão lacrado. A ação de Mércia evitou que o nome de José Carlos fosse inscrito na fatídica lista de mortos e desaparecidos em razão da ditadura. Além disso, pela observação e posterior descrição do corpo, Mércia desmentiu a falsa nota publicada pelo governo ditatorial, que alegava ter sido a morte do Zé provocada por tiros dados por companheiros seus, num encontro nas ruas do Recife.

Recebi de presente, por intermédio de Nilmário Miranda, um livro, organizado pelos valorosos amigos do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, cujo título é o seguinte: Diários – 1973-1974 -Escritos por Mércia Albuquerque Ferreira. Maior advogada de presos políticos do Nordeste.

Foi uma leitura emocionante. Não se pode dizer que Mércia tenha sido uma mulher de esquerda. Foi, sim, uma advogada consciente das prerrogativas de sua profissão e uma pessoa que, além de admirar o idealismo dos jovens e das jovens revolucionárias, se condoía de seus sofrimentos na prisão. Mércia recebia em sua própria residência os parentes dos presos, os consolava e dava-lhes esperança de que iriam rever com vida aqueles que amavam. Chegou até mesmo a fazer doações em dinheiro às famílias mais pobres. Mércia visitava constantemente os presos políticos, leva-lhes comida, remédios e alento. Exigia ser atendida pelos homens da repressão e nos tribunais, algumas vezes, obteve a absolvição dos incriminados.

No dia 28 de janeiro de 1974 anotou em seu diário. Leio:

“Audiência de Flávio Lima e Silva e os Jatobá (Agra, Dênis e Breno); terminou às 12:10h. Negaram os fatos da denúncia. Estou profundamente emocionada com o que ouvi desses meninos, revelações dignas de serem colocadas nos arquivos da Gestapo. Fuzilamento simulado, pau-de-arara, telefone, queimaduras, sede, fome suspensão pelos pulsos e cabelos, pontapés nos escrotos, unhas arrancadas. Tenho presenciado tantas violências que me pergunto se é válido pertencer e permanecer entre os da minha espécie”.

Apesar da terrível realidade que enfrentava – ela mesma chegou a ser presa DOZE vezes -, Mércia preservava um leve senso de humor. Em visita à prisão de Itamaracá, ouviu do diretor do presídio, a seguinte frase:

“Mais me dói a morte de um cavalo / que a de um preso político”.

Mércia reagiu:

“Faz muito bem em defender a sua espécie, eu defendo a minha: os homens”.

Ao longo do diário, às vezes, ela escrevia poemas. Foram 15, entre 1973 e 1974. Parece-me que os escrevia com a intenção de buscar um pouco de alívio, em meio a tantos tormentos.

Vou poupá-los da descrição que a Dra. Mércia fez da situação do corpo do Zé, que se revelou durante a exumação, em Recife.

No entanto, vou ler a poesia número 4, que ela escreveu em 25 de dezembro de 1973, dia de Natal, rememorando a exumação.

Mata-Machado

Vi /

No silêncio da tarde /

Quando o sol desfalecia /

Os restos dele surgirem.

Não se sabia o que houve /

Braços e pernas quebrados /

A carne em putrefação /

Oito dias se faziam

Da sua detenção /

Todos os dentes partidos /

Escalpelado também /

Não havia sinal de balas /

Havia apenas uma verdade /

Que morrera de pancadas,

Pau-de-arara, telefones

Pontapés e cacetadas /

Num massacre odiento /

Sem defesa e sem culpa

Subtraíram-lhe dos vivos.

É só. Obrigado

Agradecimentos

“Agradeço, primeiramente, à deputada Leninha, autora do requerimento que solicitou esta sessão especial, aos deputados e deputadas que o apoiaram e ao presidente desta Casa, deputado Tadeu Martins Leite, que acatou o requerimento e o submeteu à aprovação do plenário.

Agradeço aos meus primos, Cristiano da Mata Machado e Pablo da Mata Machado, que chamaram a atenção para a proximidade dos 50 anos do assassinato do Zé Carlos e, dessa forma, insuflaram ânimo ao meu espírito para assumir a coordenação desta Semana de eventos.

Tarefa dolorosa, pelas tristes lembranças que evocam do passado, mas também gloriosa, pela justa expectativa que traz, de que a vida, a luta e o martírio de José Carlos jamais serão esquecidos.

Agradeço ao Assessor Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Nilmário Miranda, amigo ao qual apelei em primeira mão para que me ajudasse a organizar as homenagens ao Zé Carlos, sendo prontamente atendido. Foi Nilmário quem propôs buscar a Assembleia Legislativa de Minas Gerais para a realização dessa sessão especial.

Agradeço aos membros da Comissão Semana Zé, que se formou para organizar os diversos eventos. Além de Cristiano, Pablo e Nilmário participaram Cláudia Houara, Marcelo Catoni, as primas Isabel Campolina e Ana Maria Mata Machado e o cineasta Rafael Conde.

Isabel foi a responsável pela criação das peças de divulgação (os cards, como hoje se diz), Marcelo Catoni organizou o Seminário Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, que será realizado amanhã na Faculdade de Direito, a partir das 8h30. Cláudia Houara quebrou vários galhos de produção dos eventos e Ana Maria viabilizou uma série de contatos. Destaco a visita que fizemos à Rua José Carlos Mata Machado, no Bairro das Indústrias, onde fomos recebidos pelo jornalista e historiador Chico Nascimento, autor de uma história daquele bairro, a quem agradeço de forma especial. Rafael Conde coordenou as ações necessárias à exibição do seu filme Zé, que será apresentado no próximo sábado, às 10h30. Na oportunidade, agradeço à Secretária Municipal de Cultura, Eliane Parreiras, pela cessão graciosa do Cine Santa Tereza, sala que exibirá o filme.

Agradeço ao Sindicato de Jornalistas de Minas Gerais, na pessoa de sua presidente Lina Rocha, que cedeu a Casa do Jornalista, que leva o nome do meu pai, para a realização do bate-papo com a velha guarda da resistência, realizado ontem, com muito sucesso.

Agradeço à jornalista Renata Mata Machado, outra prima, que esteve diuturnamente chamando a atenção da imprensa para a importância da Semana Zé.

Agradeço, em nome de mais uma prima, Verônica Mata Machado, (a família é grande) a participação do Coletivo Suprapartidário de Esquerda, Linhas do Horizonte, que se expressa através do bordado e hoje ilustra a tribuna com essa belíssima e sugestiva peça.

Agradeço à maestrina Beatriz Myrrha e a todos os componentes do Coral dos Desafinados, que se apresentará logo mais, no encerramento dessa sessão.

Agradeço às minhas irmãs, Maria do Carmo, Marília, Mônica e principalmente Edite, que me apoiaram na realização da Semana.

Agradeço aos filhos do Zé Carlos, Dorival Mata Machado e Eduardo Neves da Silva, que se entusiasmaram com a realização desta Semana e fizeram todo o possível para o sucesso do evento.

Agradeço as presenças de Madalena Prata Soares, viúva de Zé Carlos e de Maria do Socorro, a Grauninha, companheira do casal naqueles dias difíceis, quando a repressão aumentava o cerco aos militantes de Ação Popular.

Agradeço a presença do casal Samarone Lima e Aura, ele autor do livro “Zé; José Carlos Novaes da Mata Machado, uma reportagem”. Nesta oportunidade, também agradeço a Maria Mazzarelo Rodrigues, proprietária da Mazza Edições, que disponibilizou os últimos exemplares do livro, hoje expostos na cafeteria e colocados à venda pelo livreiro Antônio Borges, da Livraria Esquerda Literária. No final dessa sessão Samarone estará à disposição para autografar o livro.

Aproveito para agradecer também à minha esposa, Maria Moura, à minha filha Clarice e seu marido Fernando, sempre carinhosos comigo nesses dias intensos. Lembro também de meus filhos do primeiro casamento: Leonardo, Mariana e Marcos.

Por fim, agradeço a todos e a todas que atenderam ao nosso chamado para estar aqui hoje, nesta sessão especial que relembra a vida e a morte de José Carlos Novaes da Mata Machado.

Espero não ter esquecido ninguém…”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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